Fiz o meu 5º ano de medicina, em Londres, ao abrigo do programa Erasmus. Aí encontrei colegas vindos de todo o Mundo. Foi um ano de trabalho mas também de partilha de culturas e modos diferentes de encarar a vida. Para além dos estudos, a convivência diária, gerou um bom entendimento que foi crescendo repentinamente, como rio em época de cheias. A língua comum era o inglês mas uma linguagem mais profunda nos unia e irmanava a todos: a amizade. Eu sentia que os grandes ideais de solidariedade, de paz, de amor, se abrigavam nos nossos corações juvenis e nos impulsionavam a construir, cada um no seu país, um Mundo melhor. Foi um ano de vivências inolvidáveis que brilhou na minha vida como um relâmpago no horizonte. Mas como tudo o que é bom se acaba depressa, pareceu-me que também, num abrir e fechar de olhos, tivemos que regressar aos nossos países de origem, levando na bagagem novas experiências, de parceria com sentimentos de concórdia e compreensão. Quando nos despedimos, no aeroporto de Londres, todos cantámos, vivamente emocionados: Good bye London; good bye my friends! Good bye London, good bye! Dizíamos adeus a Londres e àquele grupo de amigos, cheios de sonhos, que talvez nunca mais tivéssemos oportunidade de rever na vida.
Eu regressei a Portugal, concluí o meu curso de medicina, e lancei-me afincadamente no exercício da profissão, no Hospital de S. João, no Porto. Aí tentava com a minha ciência e competência, restituir a saúde a todos os meus doentes. Tinha agora um objetivo na vida: erradicar as doenças, a dor, o sofrimento à minha volta, tanto quanto de mim dependesse.
Quando saí do consultório sorvi o ar doce da tarde, senti os cheiros suaves que se exalavam e vi o outono pintalgando de amarelo as árvores, pregoeiras da aproximação do inverno.
O tempo foi passando vertiginosamente, e um dia do mês de setembro (já eu ia nos quarenta anos), ao fim de jantar, fui dar um passeio digestivo pelas ruas adormecidas da cidade. Ao recolher a casa, senti que estava exageradamente cansado e sem forças, com dificuldades na respiração. Tirei umas férias mas, porque a causa de tudo isto devia ser o excesso de trabalho. Mas findas as férias, infelizmente o cansaço persistia, até ainda mais acentuado, e a cor do rosto empalideceu visivelmente. Em outubro consultei um médico amigo que me mandou fazer análises. Passado uma semana chama-me, com urgência, ao seu consultório. Análises na mão, senta-se em frente a mim e comunica-me com um sorriso forçado estampado na face:
– Meu caro Vítor, isto não está famoso.
– Então o que é que dizem essas análises?
– Que tens um linfoma…
– Maligno? – Sim! – atirou-me, laconicamente, como uma pedrada.
Ao ouvir a notícia senti medo, insegurança, perplexidade, nem sei bem explicar. Num relance vi-me reduzido a uns meses de vida e tantos sonhos desfeitos, tantos projetos abandonados! Como médico, percebi que se instalara no meu sistema linfático uma espécie de big-bang, em expansão galopante. Abria-se para mim um novo mundo nunca de antes experimentado: as dores e sensações que eu conhecia apenas pela descrição dos meus doentes, ia agora experimentá-las na minha própria pele. Um suor frio começou a escorrer-me pela face agoniada.
Quando saí do consultório sorvi o ar doce da tarde, senti os cheiros suaves que se exalavam e vi o outono pintalgando de amarelo as árvores, pregoeiras da aproximação do inverno. Tive um calafrio como a prenunciar, também, o meu rápido declínio. Enquanto me dirigia para casa, pensei então no meu passado. Vi-o com uma nitidez impressionante. Tanta ambição, tanto sonho… tudo desfeito!
O meu médico, esgotadas as hipóteses de cura em Portugal, aconselhou-me um tratamento em Londres, ao cuidado de um cirurgião que agora se impunha, internacionalmente, dizia ele, com uma técnica inovadora.
Mas a brisa ligeira dessa tarde dourada, parecia transportar-me para lá dos sentidos e fazer derramar uma consoladora esperança sobre o meu espírito agitado. Aquele linfoma maligno, é certo que trazia o selo de uma chamada urgente para a Casa do Pai, mas também é certo que a esperança é a última a morrer. Poderia ser que Deus reconsiderasse e me concedesse mais alguns anos de vida. Era tão novo! Quarenta anos! Com filhos de tenra idade para criar!... Pedi-lhe, com todas as forças que ainda albergava na alma, que isso acontecesse: que fizesse um milagre já que a medicina tinha pronunciado o seu veredito fatal.
Passados meses, a doença avançava assustadoramente, como previsto. Comecei a espremer as horas, os minutos e os segundos para extrair deles o máximo de amor e carinho que podia manifestar à minha mulher e aos meus filhos que me pareciam desnorteados. Fixava-os com um olhar intenso como se fosse a última vez que os visse. Considerava muito a sério a ideia de que o que levamos desta vida é a vida que aqui levamos e eu, pelo menos agora, queria enchê-la de amor, de entrega aos outros. Dar-lhes tudo o que nunca lhes pude dar porque me consumia sempre numa correria maluca.
O meu médico, esgotadas as hipóteses de cura em Portugal, aconselhou-me um tratamento em Londres, ao cuidado de um cirurgião que agora se impunha, internacionalmente, dizia ele, com uma técnica inovadora. Joguei a minha última cartada. Desloquei-me a Londres confiante nesse cirurgião, levando na mala de viagem uma grande soma de esperança. Mas ao entrar no hospital, voltou a pesar sobre mim um tremendo estado de abatimento. Não conhecia ali ninguém! Mas este desânimo logo se desvaneceu quando um vulto desconhecido se materializou ao pé de mim e aos meus ouvidos soou, em surdina, aquela melodia, escutada noutros tempos e noutro contexto: Good bye, London; good bye, my friends! Good bye London, good bye! Era o David quem cantava, o David que fez comigo o Erasmus em Londres há tantos anos atrás e que se iria ocupar do meu restabelecimento. Era ele o tal médico famoso!
– Eh! Vítor!– saudou-me.– Abandonaste-me durante tantos anos mas o destino obrigou-te a vir ter comigo.
– Pois obrigou! – exultei de entusiasmo. – E, pelo que consta, acho que caí em boas mãos.
– Acho que sim! Descobri um medicamento inovador que elimina esse género de linfomas em poucos meses. Tem confiança. Presumo que também irá resultar contigo.
Ao ouvir tais palavras reanimei-me, voltei a recuperar a esperança perdida. O meu amigo fez tudo para me salvar a vida. Durante os meses que passei no hospital, a nossa amizade revivesceu, paralelamente com a minha saúde. Quando o David me deu por curado, convidei-o para jantar, num bom restaurante de Londres. Foi um jantar de amigos, que mais pareciam irmãos, onde recordámos o nosso primeiro encontro quando, ainda jovens, fizemos em conjunto o programa Erasmus.
No dia seguinte regressava eu a Portugal, completamente curado. O David veio com a mulher (uma mexicana que eu também conhecia do Erasmus) despedir-se de mim ao aeroporto. Quando ia a transpor o cais de embarque e era forçoso separar-me deles, entoaram, só para mim, numa doce cumplicidade, aquela canção que tantas recordações me evocava: Good bye, London; good bye, my friends! Good bye, London, good bye! Até me vieram as lágrimas aos olhos, ao ouvi-la neste contexto singular.
Regressei a Portugal com uma nova vida a jorrar dentro de mim. Dei graças a Deus por me ter deparado o meu amigo David que, com a sua amizade e ciência, me devolveu a vida e a alegria de viver, junto da minha família.
JOSÉ RIBEIRO DA COSTA