CONTO DE NATAL: Verdadeiro significado do Natal

Ilustración Manuel José Águila.
Mês de dezembro. Árvores nuas, esqueléticas, apontam para o céu; folhas mortas, amarelecidas, juncam o chão. As pessoas acodem às janelas, observando quem entra e sai do Café da Bomba, em Telhado. Cerca das cinco da tarde do dia de Consoada, um desconhecido estacionou o carro em frente do café, mete gasolina, entra e senta‑se na mesa ao lado da minha, sem falar com ninguém. Aparentava os seus sessenta anos. Boa figura, bem trajado, mas de ar sucumbido e preocupado.

Mês de dezembro. Árvores nuas, esqueléticas, apontam para o céu; folhas mortas, amarelecidas, juncam o chão. As pessoas acodem às janelas, observando quem entra e sai do Café da Bomba, em Telhado. Cerca das cinco da tarde do dia de Consoada, um desconhecido estacionou o carro em frente do café, mete gasolina, entra e senta‑se na mesa ao lado da minha, sem falar com ninguém. Aparentava os seus sessenta anos. Boa figura, bem trajado, mas de ar sucumbido e preocupado. Parecia mesmo estar profundamente infeliz. Pede um galão, abre o jornal e mergulha na leitura, um pouco alheado de tudo. Centrou a sua atenção numa reportagem sobre os abandonados que na noite de Natal andam por aí ao deus‑dará, sem encontrar alguém que os console com uma sopa quente e um pouco de afeto. Tomado o galão, pagou e, silencioso como entrou, sai, entra no carro, e desaparece na estrada que liga Telhado a Famalicão. Mal tinha acabado de arrancar, já o proprietário do café se dirige a mim, perguntando:

– Ó Gaspar, conheceste este figurão?

– Eu não! Nunca o vi mais gordo.

 – Pois conheço‑o eu, e muito bem. Há tempos atrás, era eu ainda pequeno, morava aqui perto, em S. Cosme do Vale, mas há mais de doze anos que desapareceu sem deixar rasto.

– Como assim?

 – É verdade. Tinha quatro filhos, uma mulher que o amava e ele até parecia ser uma criatura feliz: lutador, fazia pela vida e quando as dificuldades apareciam, sabia vencê‑las, de modo a que a família pudesse viver em paz e com certa abundância. Mas, a dado momento, parece que uma nuvem negra pairou sobre o seu lar e as coisas alteraram‑se. Com o nascimento do quinto filho, o Roberto, o homem ficou transtornado. Não queria que ele viesse ao mundo, que já eram filhos a mais, e começou a culpabilizar a mulher, hostilizando‑a.

– Ó homem – argumentava ela com muita soma de paciência revelada nos gestos – Não compreendo essa tua casmurrice. Olha que um filho é um dom de Deus!

Mas ele nem olhava para o recém‑nascido. Começou a andar mal- humorado, poucas falas e a desinteressar‑se por completo da família. Bons modos manifestava-os só fora de casa, em especial no ambiente em que encontrava certas compensações. As relações foram-se azedando à medida do evoluir do tempo, até que um dia, já o Roberto ia nos três anos, aconteceu o que se esperava: despediu‑se da mulher, dizendo descaradamente que já não a amava; despediu‑se dos filhos, pedindo-lhes que o compreendessem, foi‑se embora e nunca mais voltou. Começou a constar‑se em S. Cosme do Vale que, para assim abandonar uma família bem constituída, a sereia que o tinha enfeitiçado, devia possuir enorme poder de sedução! Naquela família, todos sofreram, mas, mais que ninguém, o pequenino Roberto que insistia na pergunta inocente:

 – Mãe, então o pai não vem para casa, mãe? Eu queria vê‑lo!

 – Há de vir um dia, filho! – entristecia‑se a mãe, a voz embargada pela comoção. – Agora trabalha muito longe, não pode vir ver‑nos sempre que deseja.

 E deste modo iludia o assunto, evitando dizer‑lhe claramente que o pai os tinha abandonado, que não queria saber dele, nem dela, nem dos outros irmãos.

    O dia começava a fechar com o sol a esconder‑se no horizonte; o frio soltava‑se mais à vontade pela aldeia e, por via disso, os curiosos que espreitavam às janelas recolhiam para dentro a ver a confeção da ceia da Consoada. O dono do Café da Bomba, depois de me narrar os acontecimentos que acabaste de ler, continuou:

– Ao fim de tantos anos, estranho muito ver este figurão por aqui. E logo hoje, noite de Natal. Onde irá ele passar a Consoada? A mim nem sequer me conheceu, mas eu conheci‑o muito bem!

  Soube‑se depois que este homem enigmático fazia as refeições, desde uns dias atrás, no restaurante dos Moutados, a três quilómetros de Vila Nova de Famalicão, porque a mulher com quem vivia, saturado da sua companhia,  o tinha despedido rudemente:

– Trata da tua vida, homem! Não te devo nada! Tens família, vai para ela. Ela que te ature, que eu não tenho obrigação nenhuma!

   Na aldeia, na casa que fora sua e que em tempos abandonara, reinava agora a azáfama própria da Consoada. Estava a casa cheia de gente. Desde que o homem da casa fora embora, filhos e netos apinhavam‑se em redor da mãe, o esteio que lhes restava, tentando preencher o vazio que se fazia sentir. E hoje, como nos demais dias festivos, lá estavam todos! Os netos faziam alegremente o presépio, orientados pelo Roberto que, com dezassete anos feitos, frequentava o curso de Mecânica, em Braga. A certa altura teve de ir ao alpendre buscar umas  tábuas para a cabana do Menino Jesus. No trajeto apercebeu‑se de um BMW preto, estacionado perto da casa, a uns escassos metros.  Dentro dele  vislumbrou um homem elegante mas não lhe deu importância. Foi concluir o presépio, antes da ceia da Consoada. A alegria era enorme, especialmente a das crianças que, além de quererem participar nos festejos comemorativos do nascimento do Salvador, não disfarçavam a sua inquietação, esperando pela ceia, pelas rabanadas, o bolo-rei e ansiando que a meia‑noite chegasse, para a habitual distribuição dos presentes.

   As estrelas pontilhavam o firmamento, com uma luz diferente, nítida e fria, que enregelava; a lua esparzia os seus raios macios, macilentos, que acordavam nas pessoas sentimentos nostálgicos de um acontecimento longínquo que naquele dia se comemorava. Nisto tocam à campainha. Roberto foi abrir, reconhecendo logo o cavalheiro que há pouco vira no BMW, estacionado lá fora.

 – Não me conheces? – perguntou o senhor com voz firme e cativante.

 – Tenho ideia de já o ter visto, mas ao certo, não sei quem é.

– Sou o  teu pai, Roberto. Posso entrar?

– Com certeza! – respondeu meio atarantado com aquela inesperada revelação.

    E o homem saudou cordialmente, reparando em todas aquelas pessoas alegremente reunidas.

– Venho desejar‑vos um Santo Natal!

   Os mais velhos reconheceram‑no imediatamente, mas, por momentos, foi como se tivessem perdido a fala. Foi a mãe a primeira a reagir:

– Tu, por aqui? Que é que pretendes? Retirar-nos a paz e a nossa alegria? Vai para onde andaste estes anos todos!

  E decidida, levantou‑se repentinamente, deu dois passos em frente para  abrir a porta e pôr aquele homem na rua. Menos exuberante do que quando chegou, o marido ficou enfiado e comentou, entristecido:

 – Ai tu não me queres hoje aqui, Clara? Está bem. Vou‑me embora outra vez, mas não te esqueças que esta é também a minha família...

 – Que tu abandonaste há doze anos! – cortou ela asperamente.

– Pois sim, mas que agora desejava reaver. Regresso ao meu lar arrependido, muito arrependido.

– Não confio no teu arrependimento!...

– Mas podes confiar. É certo que há que pedir desculpas, – continuou com firmeza –especialmente a ti e aos meus filhos. E aqui estou eu a fazê‑lo, a pedir perdão a todos os que ofendi. Acho que não há dia mais propício que o de hoje, para tentar a reconciliação convosco e comigo mesmo. Reassumir a minha família, é aquilo que mais desejo.

– Vai‑te embora e deixa‑nos em paz! – insistiu a mulher. – Estamos fartos de sofrer por tua causa.

   Mas ele continuou, com decisão:

 – Tu, Clara, que viveste dezoito anos comigo, que conheces melhor que ninguém o meu orgulho pessoal, sabes bem quanto isto me está a custar. Ter que confessar a ti e a todos que errei…

– Não quero saber nada disso. Vai-te embora.

 – Se não me queres... Se não me perdoas...

Pregou os olhos no chão, lançou a mão à maçaneta da porta que abriu e arrastou‑se, pesaroso, cabisbaixo, para a saída.

    Ao abrir a porta viu‑se outra vez a lua, boiando no céu escuro, com uns grandes olhos de luar, serenos e tranquilos, como a convidar à paz e reconciliação entre os homens de boa vontade. No meio de um silêncio pesado a sufocar a algazarra das crianças, Roberto, com ar reprovador, fixou a mãe, e fez ouvir a sua voz:

 – Nem no dia de hoje és capaz de perdoar ao Pai? Que significa para ti o Natal? Que sentido tem o nascimento de Jesus? Não foi Ele quem trouxe a paz e o perdão aos homens?

   A mãe caiu em si. Num relance, recordou os anos que passara em comum com o homem que acabara de expulsar de casa. Como num filme, passaram‑lhe pela cabeça as alegrias e as tristezas vividas em comum, as lutas travadas nos começos de vida para criarem  os filhos. E foi por entre lágrimas que pediu ao filho:

 – Vai depressa, Roberto, e vê se ainda o apanhas. Se tu lhe perdoas, também eu lhe vou  perdoar o abandono de tantos anos! E enquanto vais, coloco mais um prato na mesa para consoarmos todos, como deve ser!

    O homem reentrou em casa mais animado, acompanhado de Roberto, e foi alvo de uma receção bem diferente. Parece que o calor do presépio se comunicou a todos os presentes. Houve beijos e abraços, houve lágrimas e sorrisos, houve palavras afetuosas, houve pedidos de perdão e de desculpa. Naquela noite de Natal, Clara soube ultrapassar a amargura e ressentimentos sentidos durante anos e anos. Com o seu ato, recuperou ela o marido, que durante tanto tempo estivera ausente. Mais do que isso, contribuiu para que os filhos recuperassem o pai.

 Melhor Natal não poderia ter acontecido! Melhor presente não poderia ter trazido o Menino Jesus àquela família.

                                                                                                                    JOSÉ RIBEIRO DA COSTA